O silêncio das cordas mais próximo

Documentário revela como fabricantes de arcos de violino lutam para salvar o pau-brasil da extinção.
Por Monique Cardoso



Já foi o tempo em que a sobrevida ou, em previsões otimistas, a reviravolta da música clássica dependia da conquista de novas platéias. Está certo que, a cada ano que passa, o público, formado em sua maioria por cabeças brancas, encolhe. Mas o gênero musical sofre outras ameaças. Ao lado de fatores como a crise na indústria fonográfica e a falta de espaço de difusão na música das FMs, por exemplo, se esgueira um inimigo sem ligação aparente com partituras e concertos: a extinção do pau-brasil. A madeira brasileira, à beira do desaparecimento, é a matéria-prima para fabricação dos arcos dos instrumentos de corda. É exatamente a relação entre a música e a espécie o tema do documentário A árvore da música, dirigido por Otávio Juliano. O longa-metragem – exibido em seção fechada no Jardim Botânico há duas semanas, unindo na platéia botânicos e instrumentistas – não só dá o alerta, mas mostra iniciativas do meio musical para salvar a espécie. A estréia está prevista para julho.

– Em cada concerto, em cada registro fonográfico em que haja um instrumento de cordas, há um pedaço do Brasil – pontua Juliano.

O diretor, que toca o projeto desde 2007 com os produtores Luciana Ferraz e Rogério Ribeiro, descobriu, durante a pesquisa para o filme, que os primeiros estudos sobre a conservação do pau-brasil partiram dos archetiers, artesãos que fabricam os arcos. Há mais de 15 anos o Ibama restringiu o corte e recentemente impôs severas limitações para a exportação da madeira. Caso a árvore desapareça, leva com ela a tradição dos archetiers, que passam, de pai para filho, o secular segredo da fabricação dos arcos. Embora o objeto pareça coadjuvante, é ele que determina como violinos, violoncelos, violas e contrabaixos vão soar.

– O arco é um acessório pessoal do músico. Cada um tem um centro de gravidade próprio, que determina a distribuição do peso. Precisa ainda ser flexível e resistente ao mesmo tempo, o pau-brasil é a madeira que garante isso – detalha Michel Bessler, spalla da Orquestra Sinfônica Brasileira há 30 anos. – Sonoridades profundas, notas longas exigem que se faça uma pressão grande sobre o arco, e ele precisa realmente resistir.



O filme mostra como os archetiers europeus estão mobilizados na questão da preservação da árvore, chamada no exterior de madeira pernambuco, por causa da origem da melhor variante da espécie. Em 2000, foi formada a International Pernambuco Conservation Initiative (IPCI), reunindo, até agora, 250 profissionais de 18 países. O objetivo é plantar 500 mil mudas. O Greenpeace reconhece a iniciativa como das mais eficazes na manutenção da espécie. Os artesãos doam 2% do faturamento para pesquisa e replantio. Ainda assim, no ano passado, foram os mais prejudicados com as conquistas protecionistas do Brasil numa corte ambiental realizada em Haia. Thomas Egan, um dos mais importantes fabricantes de arcos e instrumentos dos Estados Unidos, dono do atelier Vita Dolce, é taxativo:

– Sem a madeira pernambuco é impossível fazer um arco de qualidade. A combinação de resistência, densidade, beleza produz sons maravilhosos. Não conheço outro material que possa fazê-lo.

Apesar de pender para a temática ambiental, o documentário aproveita a ligação com a música para apresentar uma trilha sonora para se ouvir no último volume. Traz belas temas de compositores como Beethoven, Brahms, Schubert e Vivaldi. Entre os entrevistados estão Daniel Shindarov, spalla da Ópera de Viena, o violinista David Garret, ex-modelo, famoso por tocar de camiseta e jeans rasgado, e os violoncelistas Antonio Meneses e David Chew. Também mostra imagens da Ópera de Viena, que realizou alguns concertos com renda destinada à instituição de proteção ao pau-brasil.

– Na Europa, a preocupação é extrema. Não há da onde tirar a madeira. Os artesãos vão trabalhar com aquilo que têm estocado. Nada mais – conta a produtora Luciana Ferraz.

Fora os 500 anos de exploração predatória, há ainda a dificuldade de reprodução da espécie e o longo tempo de maturação. Novas mudinhas criadas em estufas, por exemplo, só podem ser transferidas para a natureza com três anos. Até a árvore crescer leva mais 50. Muitas vezes, quando botânicos voltam a lugares de replantio para acompanhar o crescimento, a área já foi queimada. A manufatura do arco, além da exclusividade da matéria-prima, também tem muitas idiossincrasias. Apenas uma das três ou quatro variantes que restaram do pau-brasil servem para a fabricação. E mais: é preciso que a madeira tenha sido cortada há pelo menos três décadas, tempo para que a tinta vermelha característica da madeira seque.

Os documentaristas percorreram, além de Estados Unidos, França e Áustria, o Rio, o Espírito Santo (estado em que ainda há uma pequena reserva nativa da árvore) e a Bahia (onde foi replantada para fazer sombra nas produções de cacau). Um dos momentos emocionantes do filme é quando o pesquisador do Jardim Botânico do Rio de Janeiro Haroldo Lima chega, com a equipe, à maior árvore da espécie conhecida, cuja idade, estima-se, seja de 500 anos. Batizada por botânicos que estudam pau-brasil no Sul da Bahia de indivíduo 137, tem mais de quatro metros de circunferência.

– No filme não dizemos a localização exata dela para que contrabandistas da madeira não a cortem. Imagina quanto não vale? – indaga o produtor Rogério Ribeiro.



Entre as iniciativas de preservação tomadas no Brasil, A árvore da música destaca o archetier Marco Raposo, do Espírito Santo, um dos principais exportadores de arcos para Estados Unidos e Europa, que criou, por iniciativa própria, uma minirreserva. A consciência ambiental entre os envolvidos com música clássica no Brasil, porém, não é grande.

– Aqui ninguém parece estar preocupado com isso – conclui Michel Bessler. – Há anos não falo sobre pau-brasil com ninguém da música clássica.

Se a declaração do spalla da OSB parece preocupante, a do conhecido archetier carioca Marcos Vinícius Goulart, herdeiro da tradição de um dos mais importantes luthiers do país, Guido Pascoli, é ainda mais desanimadora.

– Há muito tempo é preciso autorização do Ibama para comprar pau-brasil, mas nós, que trabalhamos com isso, sabemos que, infelizmente, para quem quer comprar no mercado negro a madeira não falta – revela o artesão.

Marcos Vinícius diz que a archetaria é um mercado muito pequeno, e que a demanda não é tão grande. Ainda assim, um desses acessórios chega a custar US$ 5 mil, embora bons arcos possam ser vendidos por cerca de R$ 400.

Vai depender de que parte da madeira ele é feito. Um mesmo pedaço de pau-brasil pode dar arcos excelentes e outros razoáveis – explica.

Foi no fim do século 18 que o luthier francês François Tourte descobriu que com o pau-brasil poderia fazer um arco mais bem adaptado às crescentes mudanças na escrita musical. Antes côncavo, o acessório passou a ser ligeiramente convexo, por isso a madeira precisava ser mais flexível. Testes já foram feitos com outras madeiras para se encontrar um substituto para a pernambuco wood. A indústria oferece a fibra de carbono, considerada inaceitável pelos músicos de primeiro time.

No filme, Antonio Meneses dá a definição que melhor traduz a função do arco:

– É como uma extensão do meu braço.